Beethoven


             Beethoven, Ludwig van

 "Uma criatura completamente indomável", disse a respeito dele o poeta alemão Goethe, seu contemporâneo. Beethoven despertou o fascínio de pessoas tão diferentes como o escritor francês Jules Romains, que viu nele "o próprio modelo do grande homem", ou do musicólogo Alfred Einstein, para quem "seu nome é, por si mesmo, suficiente para se pensar num novo mundo da música", ou do diretor de cinema americano Stanley Kubrick, que no filme A Clockwork Orange (1971; A laranja mecânica) usou o tema final da nona sinfonia como fundo da megalomania agressiva de seu personagem principal.

               Ludwig van Beethoven nasceu na cidade alemã de Bonn, onde foi batizado em 17 de dezembro de 1770. Era de origem flamenga (motivo do van, em vez de von), neto e filho de músicos. Aos primeiros sinais de seu talento, o pai procurou explorá-lo como menino prodígio. Foi, além disso, muitas vezes injusto e brutal para com o filho. Este, porém, só a partir de 1781 passou a ter uma formação musical sistemática, com o melhor mestre de cravo da cidade, Christian Gottlob Neefe. De início próspera, a família de Ludwig viu-se em sérias dificuldades, devido ao crescente alcoolismo a que seu pai se entregou.

               Beethoven teve de deixar o colégio aos 13 anos, para ganhar o sustento dos seus. Já substituía Neefe como organista da corte e, nos quatro anos seguintes, fez tais progressos que o arcebispo local o encaminhou a Viena, em 1787, para estudar com Mozart. Dois meses depois, porém, a doença e morte da mãe o levaram de volta a Bonn. Então alguns dos numerosos amigos e admiradores que já possuía se fizeram seus mecenas, como os Breunings, o violinista Franz Anton Ries e o conde Ferdinand von Waldstein, que aplainou o caminho de seu retorno a Viena, em 1792.

               Como Mozart morrera no ano anterior, Beethoven estudou com Haydn -- com quem não se entendeu --, com o contrapontista Johann Georg Albrechtsberger e com Antonio Salieri. Sem ser um compositor especialmente precoce, publicara até aí poucas peças e, embora de temperamento áspero e pouco inclinado às boas maneiras, encontrou ampla aceitação na alta sociedade vienense, cuja rica tradição musical propiciara o pronto reconhecimento do gênio. O jovem contou com a proteção da família Brunswick, do conde Rasumovski e do arquiduque Rodolfo, aos quais, reconhecido, dedicaria obras célebres, ainda que arrebatado pelos ideais republicanos.

               A paixão amorosa, na vida de Beethoven, prestou-se a muitas controvérsias e fantasias. A maior parte dos biógrafos ou o coloca acima desses laços terrenos e totalmente dominado pela música, ou repleto de ternura incompreendida por algumas mulheres, almejando casar-se e só encontrando a rejeição ou o conflito por parte de suas eleitas. Provavelmente se apaixonou por uma aluna, a condessa Giulietta Guicciardi, a quem ofereceu a sonata opus 27 nº 2, dita Ao luar; por Therese Malfatti e por Bettina Brentano, amiga de Goethe, mas nada se conhece ao certo sobre o sucesso ou fracasso dessas relações.

               No início do século XIX, já adorado como pianista e como improvisador, e tendo divulgado algumas de suas primeiras obras importantes, o compositor não era, porém, o que se supunha um homem bem-apessoado: era forte, mas baixo, circunspecto e com o rosto marcado pela varíola. A partir de 1798, acometeu-lhe o problema da surdez, que naturalmente lhe abriu um fosso de desespero. Ante a ineficácia dos recursos médicos, chegou, como registrou no Testamento de Heiligenstadt, a cogitar do suicídio.

               Deu-se então mais e mais à sua arte, numa batalha feroz contra o silêncio tanto dela própria como dos homens, pois passara a se isolar crescentemente, apesar de colocar na base de seu romantismo a "superioridade do coração" e a ideologia humanitária da revolução francesa. De 1803, ano da sonata a Kreutzer e da sinfonia Heróica (de que arrancou no ano seguinte a dedicatória a Napoleão porque este se fez coroar imperador), a 1811, ano da sétima sinfonia e do trio Arquiduque, Beethoven teve sua mais intensa fase criadora, a da maturidade.

               No final desse período, embora fosse tratado como um deus, não deixava de ter problemas materiais, quer pela incerteza de seus rendimentos, quer pela dedicação à família. Procurava, por isso, um cargo permanente, e inclinara-se a aceitar o de mestre-de-capela da corte de Kassel, na Vestfália, o que levou os nobres de Viena a lhe proverem uma pensão vitalícia, para que não saísse da cidade.

               Tinha despesas, especialmente, com o sobrinho Karl, cuja guarda lhe foi legada pelo irmão Kaspar. Amealhou um pecúlio para o menino, privava-se do que fosse para não tocar nessa reserva e lutou, inclusive na justiça, contra a interferência corruptora da cunhada. Com o tempo, o rapaz, desajustado e dissipador, o acumulou de contrariedades e vexames. Além disso, por volta de 1815, a surdez de Beethoven se agravara muito e ele mantinha "cadernos de conversa" para o diálogo com os amigos. Nesses mesmos dias, porém, com o final das guerras napoleônicas, reunia-se o Congresso de Viena para discutir os destinos da Europa e não havia, na cidade e entre seus hóspedes, quem não o reconhecesse como um dos maiores mestres da música universal.

               Evolução da obra. A música de Beethoven começou comprometida com a de seus antecessores mais próximos, Haydn e Mozart. É assim a maior parte de suas primeiras sonatas para piano e das cinco primeiras para violino e piano, sendo que a nº 5, em fá maior opus 24, chamada Primavera (1801), já revela encantos e liberdades características do mestre. É o caso, ainda, do septeto em mi bemol maior opus 20, de  elegância cortesã, ou dos quartetos opus 18, inevitavelmente haydnianos, e dos três primeiros concertos para piano e orquestra, mozartianos.

               Na mesma etapa, todavia, há na sonata para piano em dó menor opus 13, Patética, ou na opus 27 nº 2, e na opus 31 nº 2, A tempestade, o senso trágico inconfundivelmente beethoveniano, assim como as sonatas para violino e piano nº 6, 7 e sobretudo 9 em lá maior opus 47, a Kreutzer (1803), revelam a plena maturidade do compositor, sendo a última destas, definitivamente, uma de suas obras-primas.

               Beethoven encontra-se, então, no auge de sua produção propriamente romântica e, no meio de torturada efusão lírica, assume seu lado exaltado e épico com a terceira sinfonia, Heróica: todos conhecem a marcha fúnebre do segundo movimento, mas é o primeiro um dos que mostram bem o aspecto "titânico" do mestre. A fase é de uma sucessão de obras fundamentais: a abertura Leonore nº 3, as sonatas para piano em dó maior opus 53, Waldstein (por ter sido dedicada ao conde Waldstein) ou Aurora, e em fá menor opus 57, Apassionata, são realizações da vitalidade e inquietação beethovenianas.

               Obras-primas de ainda maior impacto no período são o concerto para piano e orquestra nº 4, de excepcional profundidade lírica, o concerto para violino e orquestra, para muitos o mais vigoroso da história da música, os três quartetos para cordas opus 59 oferecidos ao conde Razumovski, que imprimem nova energia ao gênero, e duas peças quase tão dramáticas quanto originais, a abertura Coriolano e a quinta sinfonia, dita do Destino, a peça mais conhecida de Beethoven: desde o achado perfeito que é o tema introdutório, eleva à perfeição o que seu intérprete Wilhelm Furtwangler valorizava como "o fecundo sentido dos contrastes", em seu estilo.
               Seguiram-se a sexta sinfonia, Pastoral,  a primorosa sonata para violoncelo e piano nº 3, as 32 variações para piano em dó menor, o trio para piano e cordas opus 70, nº 1, Fantasma, o concerto para piano e orquestra nº 5, Imperador, prolongamento épico da Heróica e, ao mesmo tempo, obras de extrema penetração psicológica como o quarteto para cordas opus 74, Harpa, e a sonata para piano opus 81, Les Adieux.

               Beethoven compôs uma única ópera, Fidélio, canto ao triunfo do amor sobre a opressão política. O tema da rebelião contra a tirania reaparece na abertura  para o Egmont de Goethe, de brilhante intensidade. Obras do final dessa fase são a sétima sinfonia, essencialmente rítmica e vista por muitos como a mais bem elaborada de todas, e o trio para piano e cordas Arquiduque, uma das obras-primas do gênero.

               Na terceira fase, nada romântica, Beethoven assumiu em sua música de câmara uma espécie de realismo abstrato, de exploração dos sons em si e em seu universo particular. Pouco entendidas em seu tempo, já se inscreviam no futuro as sonatas para piano opus 101, opus 106 (a impressionante Hammerklavier), opus 109 e opus 111, as duas sonatas para violoncelo e piano, as 33 variações sobre uma valsa de Diabelli e os últimos quartetos de cordas, do opus 127 ao 135, incluindo-se a grande fuga opus 133, para Stravinski a maior obra musical de todos os tempos.

               A missa Solemnis opus 123 e a nona sinfonia,  Coral, monumentos mais conhecidos do período e culminâncias públicas da produção beethoveniana, não deixam de refletir as transformações e descobertas da fase. Daí as enormes dificuldades de ambas para a extensão da voz humana ou as inovações harmônicas da Coral. Esta mal pôde ser ouvida por Beethoven: na apresentação de 7 de maio de 1824, sentado perto do regente e de costas para a platéia, só se apercebeu dos aplausos apoteóticos quando alguém lhe tocou no ombro e o fez voltar-se para o público. Debilitado por várias outras enfermidades, estava fisicamente no fim o inaugurador e arquétipo do individualismo na criação artística, com toda a carga de conflitos dessa investidura. Nesse sentido, Ludwig van Beethoven, que morreu em Viena, em 26 de março de 1827, foi o primeiro artista moderno.















Ludwig van Beethoven, detalhe de um retrato anônimo do século XVIII (Luceu Musical, Bolonha)

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